O
direito é moldado, com efeito, para garantir um mínimo de responsabilidade
ética para a sua realização, assegurando a harmonia social. Essa
responsabilidade deve evitar, por exemplo, que o direito de aceitar o
consentimento do paciente, como se fosse apenas uma variável a mais sujeita a
uma avaliação moral, fosse determinante para direcionar todas as demandas aí
envolvidas.
A
compaixão moral permissiva tem de dar lugar a uma garantia jurídica
responsável. Obviamente se o suposto direito de exigir a morte fosse apenas uma
solução última e desesperada, frustradas as possibilidades médicas de solução,
o debate sobre as garantias essenciais tornar-se-ia central para o argumento
aqui exposto.
Pode-se
objetar que descriminalizar a conduta de terceiros não implicaria em legalizar
no sentido próprio do termo. Tal distinção dogmático-jurídica não parece não
ter muito significado prático, como a referência à objeção de consciência tem
nos casos de aborto. Não se admira que este fator esteja presente nas recentes
tentativas de abordagem, independentemente de qualquer apelo à transcendência,
do futuro da natureza humana.
Isso
se dá, por exemplo, na visão de Habermas, para quem, a sujeição da tutela
daquilo que denomina pré-vida pessoal, a fins terapêuticos produziria uma perda
de sensibilidade da nossa visão de natureza humana, a ponto de que um incentivo
de tal prática abriria os caminhos para a eugenia liberal.
O
paralelismo entre o direito e a saúde, presente já na antiguidade grega, vai
mais além de sua condição de saberes práticos. Inseparável do direito é a
exigência de simetria, derivada da radical exigência de tratar o outro como um
ser igual. Não muito distinto é o ponto de vista moral do trato não
instrumentalizado de uma segunda pessoa, perceptível na lógica da cura.
Na
mentalidade eugenésica, existe uma ruptura da aludida simetria, quando os pais
decidem de acordo com suas próprias (e, não raro, inconfessadas) preferências,
como se o doente fosse uma coisa. A liberdade é concebida como algo natural
indisponível, na qual a pessoa cria um liame com sua própria origem, de modo
que, a partir de um dado momento, não dependa mais de outra.
Se
o foco recai sobre a autodeterminação do enfermo, a questão da simetria seria
desnecessária, ao se apresentar a eutanásia como um ato de renúncia pessoal.
Surgiria um dilema entre a liberdade pessoal do doente e a imposição heterônomo de critérios despersonalizados. Novamente, o juízo moral se mostrará mais
propício a assumir um enfoque de uma atitude juridicamente responsável.
O
direito se vê na obrigação de resgatar a visibilidade do outro em um plano
bidimensional. Como a liberdade se insere num âmbito essencial de
solidariedade, na verdade, assistimos a um choque de duas liberdades. A
liberdade do profissional médico, com a salvaguarda do exercício do direito de
objeção de consciência. Mas ele não é o único protagonista na realidade posta.
O
paciente também participa e o direito não pode reduzir a resolução do problema
ético apenas garantindo a segurança do consentimento do enfermo que solicita a
eutanásia, como se tudo se resumisse a tal ato. Se se amplia o espectro de
visibilidade, emerge a responsabilidade jurídica de garantir a vontade de
outros doentes que, em condições similares do exercício de sua liberdade, não a
solicitaram.
No
choque entre o exercício de um presumido direito alheio de morrer com um
induvidoso direito à vida do paciente, reforça-se a importância de se assegurar
juridicamente os meios para o exercício de uma lógica da cura, muito mais
compatível com a citada simetria do que a almejada capacidade de dispor sobre a
vida de outrem.
Não
há dúvida de que uma atitude de abertura à transcendência tem privilegiado os
argumentos para manter o primado da dignidade como fundamento da autonomia da
vontade do paciente. Mas isso só serve para destacar o quanto o problema atual
da eutanásia reside no fracasso das tentativas de estabelecê-lo para além deste
ponto de apoio.
Igreja Presbiteriana do Rio de Janeiro
André Gonçalves
Fernandes
Juiz de direito titular de entrância final
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