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O livro de Jó, considerado o mais antigo livro das escrituras, inicia falando da prosperidade de Jó e de seu relacionamento com Deus que, conversando com Satanás, cobre Jó de elogios. O Acusador não perde a oportunidade de alfinetar o Altíssimo e põe em dúvida se tal fidelidade não é mais fruto de uma barganha do que de intimidade verdadeira. Ao ser provocado, Deus permite que Satanás tenha poder para atormentar a vida de Jó e assim provar qual a origem da sua fidelidade. Começa aí o seu infortúnio.
Neste grande drama há alguns personagens que vão buscar durante o decorrer da história encontrar respostas para o sofrimento de Jó e, por extensão, debater sobre a origem do sofrimento humano em um mundo governado por um Deus justo e bom. Zofar, Bildade e Elifaz se revezam em discursos que ora insinua, ora afirma que deve existir algum pecado em Jó, nem que seja oculto, e que seu sofrimento é justo, pois de Deus não se pode esperar outra coisa. Tais discursos são rebatidos por Jó que reafirma reiteradamente sua inocência e continua a se perguntar sobre o porquê de seu sofrimento.
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O jovem Eliú faz um apanhado geral enfatizando a soberania e sabedoria de Deus condenando todos os demais, tanto os amigos, quanto o próprio Jó. Por último o próprio Soberano do universo se revela a Jó e não lhe dá resposta alguma, a não ser reafirmar sua soberania o que, paradoxalmente, é resposta mais que suficiente para Jó que ao final responde “antes te conhecia só por ouvir falar, mas agora meus olhos te vêem”.
A mulher de Jó, esta mulher sem nome, como tantas outras mulheres da Bíblia – lembremos que até mesmo aquela que ungiu Jesus com alabastro e da qual Cristo disse que jamais seria esquecida por causa do seu gesto, também permanece anônima – era apenas uma coadjuvante.
De todos os personagens da narrativa, ela é quem tem a menor fala e menor espaço para se expressar. Não foi dado a ela o mesmo destaque dado aos discursos eloqüentes e vazios de Zofar, Bildade, Elifaz, nem teve a honra de ser a última a discursar, como o jovem Eliú. Sua participação foi um átimo, um único versículo que serviu para encerrá-la para sempre no panteão das mulheres vilãs da Bíblia com a companhia nada honrosa de Jezabel, Safira, a mulher de Ló – mais uma anônima - e outras menos cotadas.
No imaginário judeu/cristão a mulher de Jó sempre foi considerada como o protótipo da mulher insana, afetada, sem juízo, e antagônica a seu marido. Tudo por causa de sua única fala.
Como eu não estou aqui para ser mais um a jogar pedras, gostariam de mais uma vez, como sempre fazemos aqui no nosso espaço, convidar você a me acompanhar em mais uma viagem para além da tradição e dar a esta mulher o benefício da dúvida, nos permitindo entrever algo de belo em seu gesto e nos surpreender com uma inesperada lição da graça de Deus, mesmo quando Ele permite algo que para muitos de nós soa contraditório.
“Amaldiçoa seu Deus e morre”. Esta foi a frase que fez com que ela caísse em desgraça aos nossos olhos. Uma única frase, perdida lá no versículo nove do capítulo dois do livro, mas que serviu de argumento para o seu linchamento moral. Linchamento moral é algo que fazemos com enorme facilidade, mas que tal irmos para além da frase? Que tal buscarmos as motivações que a levaram a esta atitude extrema? Que tal averiguarmos se esta mulher é tão indigna e condenável para Deus quanto os nossos julgamentos determinam?
A mulher de Jó não é alguém que aparece do nada na história, não é uma transeunte que passa aleatoriamente e resolve dar sua opinião, não é sequer como os amigos de Jó que se compadeceram dele e lhe fizeram companhia, mas que depois disso iriam para suas casas e suas vidas. Não, ela era a pessoa mais próxima de Jó. E se Jó sofreu com os infortúnios que caíram sobre ele, ela também sofreu junto e amargou todas as perdas.
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Diferente dos amigos de Jó, ela estava padecendo conjuntamente do mesmo mal que se abateu sobre seu marido. Ela perdera seus filhos, sua casa, seus bens, sua dignidade e, naquele momento, via o homem a quem havia devotado uma vida ali, sobre um monturo, cheio de chagas malignas que iam da cabeça aos pés, coçando-se com um caco para aliviar sua agonia.
Nada mais injusto! Pensava ela.
Mais do que ninguém ela sabia da injustiça daquela punição. Era ela quem presenciava quando Jó chamava seus dez filhos para os santificarem, mesmo já sendo adultos. Era ela quem acordava à noite, tocava na cama procurando seu marido e não o encontrava, ia achá-lo na madrugada fazendo sacrifícios a Deus por amor à vida de seus filhos, que foram mortos todos de uma vez sem razão aparente. Era ela quem presenciava dia a dia a integridade e retidão de Jó em todas as coisas. Nos negócios, na família, entre os mais necessitados e na vida conjugal.
A mulher de Jó foi o único personagem que lhe reconheceu a inocência. E exatamente por não ver em seu marido falha alguma a ponto de receber tão grande punição é que ela revolta-se em um desabafo desesperado, sim desabafo de quem vê sua vida ruir da noite para o dia, de quem tinha uma vida em paz e temor a Deus e que se vê saqueada, sem seus filhos, sem ter como se sustentar e vendo o homem a quem amava em agonia de morte.
“Assim como fala um louca, falas tu” é a repreensão que ela ouve de Jó e, após ouvir estas palavras, cala-se, não contra-argumenta, nem rebate, apenas cala-se, como a reconhecer seu erro, ao contrário dos amigos que em nenhum momento deram descanso e só foram reconhecer o mal que fizeram depois que o próprio Deus ordenou.
A mulher de Jó representa este grito angustiado que eu e você temos no peito todas as vezes que sofremos as injustas peças pregadas pela vida. É a voz que clama por um mundo em que haja algum tipo de lógica, em que os maus sejam efetivamente punidos e os bons recebam de Deus benevolência. Ela é a porta-voz que nos mostra que nem sempre as coisas fazem sentido, que injustiças acontecem com pessoas boas e a nossa teologia nem sempre consegue responder. É a testemunha de que todos nós, em algum momento da vida, também nos revoltamos contra Deus.
Enfim, ela é muito parecida conosco, talvez por isso nós a repudiamos. Pois somos tão envolvidos e contaminados por idealizações que não reconhecemos quando vemos nossa própria face no espelho.
Mas, apesar de todos os nossos preconceitos e condenações. Apesar de todo o estigma que ela sofreu posteriormente. Deus, que é quem verdadeiramente sonda e conhece os corações e as motivações, honrou-a ainda em vida. Sim, pois Deus devolveu-lhe a saúde do marido, restituiu-lhe os bens e, suprema honra para as mulheres da antiguidade, deu-lhe mais dez filhos.
E, para confirmar que Ele entende nossas angústias e dúvidas mais do que nós mesmos gostamos de reconhecer e que Sua graça alcança até mesmo àqueles que para nós são execráveis, Ele, o Único a quem cabe estabelecer justiça, não lançou nenhuma palavra de crítica ou de condenação a esta louca mulher que teve a coragem de expressar livremente sua dor.
Pense nisso,
Igreja Presbiteriana do Brasil
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